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A história das lutas das mulheres e do feminismo existe há mais de 200 anos, sendo marcada por diversos momentos e fatos históricos. Geralmente, considera-se como marco da historiografia feminista a luta organizada das mulheres por igualdade de direitos e deveres durante a Revolução Francesa.

O primeiro documento a mencionar a igualdade jurídica entre mulheres e homens foi a “Declaração dos Direitos das Mulheres”, publicada em 29 de outubro de 1771. Olympe de Gouges, escritora e militante francesa, a elaborou como uma crítica à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que anunciou direitos de igualdade e liberdade que se aplicavam apenas aos homens. Enquanto isso, as mulheres continuavam sem o direito de votar, de ter acesso a instituições públicas, à liberdade profissional, direitos de propriedade, etc. A declaração foi rejeitada e permaneceu em completo esquecimento até 1986, quando foi publicada por Benoîte Groult.

Em meio aos ideais iluministas e das ideias revolucionárias propostas pela Revolução Francesa e pela Revolução Americana, o movimento foi tomando forma e acrescentando seus próprios ideais, como os direitos sociais e políticos. Nesse contexto, o movimento ganhou espaço e conquistou mulheres de vários países da Europa, dos EUA e da América Latina com as lutas pelo direito ao voto. Após o que chamamos de nascimento do movimento, podemos dizer que ele ficou latente por um tempo, até que em 1960 ressurge em meio aos movimentos contestatórios que surgiram neste período, como por exemplo, as lutas pacificadoras contra a Guerra do Vietnã e o movimento hippie, que provocou mudanças significativas na sociedade.

O período ditatorial brasileiro foi de 1964 a 1985. Foi um período marcado pela supressão dos direitos constitucionais, pela censura, perseguições políticas e forte repressão aos que se atreviam a se opor ao regime. O cenário propiciou mudanças significativas na sociedade brasileiras, fazendo com que surgissem grandes desigualdades sociais, políticas, culturais e econômicas. Este momento da história do Brasil proporcionou o surgimento de vários movimentos que pregavam, além da liberdade de pensamento, a igualdade entre os gêneros. Nos anos 60 o feminismo militante, que brotou nas ruas, surge como uma consequência da resistência das mulheres à ditadura, colocando em evidência a questão da mulher. Esse movimento tinha como um de seus objetivos contestar o poder, tanto no mundo privado das relações entre homem e mulher, quanto dentro da sociedade.

Nesse artigo trataremos mais detalhadamente da trajetória e das conquistas do Movimento Feminista no Brasil a partir da década de 60, passando pelo período da ditadura militar, até os anos 80. A metodologia adotada caracteriza-se como revisão bibliográfica, na qual a fundamentação foi obtida através da leitura de livros e artigos acerca do tema escolhido.

O objetivo desse trabalho é descrever as lutas do movimento no referido recorte, bem como qualificar e evidenciar as conquistas que a sociedade em geral obteve com a luta das mulheres e ainda, ressaltar os direitos que o feminismo no Brasil ainda reivindica e ainda não foram conquistados.

A DÉCADA DE 60

 

Segundo PINTO:

O movimento jovem da década de 60 não foi apenas altamente inovador em termos políticos; foi talvez, antes de tudo, um movimento revolucionário na medida em que colocou em xeque os valores conservadores da organização social: eram as relações de poder e hierarquia nos âmbitos público e privado que estavam sendo desafiados. É nesse contexto que se discute o livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, publicado pela primeira vez dez anos antes, e que as americanas lideradas por Beth Friedman tiram o sutiã em praça pública, um escândalo que até hoje provoca reações iradas. É também nesse contexto que nasce o novo feminismo no mundo ocidental. (PINTO, 2003, p. 42)

O Brasil dos anos 60 teve uma dinâmica diferente em relação ao resto do mundo. O país, nos primeiros anos da década, estava em grande agitação: a música revolucionava-se com a Bossa Nova; Jânio Quadros renunciou após uma vitória avassaladora, e Jango chegou ao poder aceitando o parlamentarismo, a fim de evitar um golpe de estado. (PINTO, 2010)

As transformações sociais ocorridas nessa década despertaram nas mulheres não apenas o desejo de conquistar seu espaço nas universidades e no mercado de trabalho, como também fez emergir uma consciência política feminina. Os homens sempre dominaram espaços onde antes nem se imaginava uma mulher ocupando, como o campo político, por exemplo. Para as mulheres restavam apenas os papéis de filhas, esposas, mães e donas-de-casa. Essas novas formas de pensar e agir as motivaram a pensar mais na ideia de controle dos métodos anticoncepcionais, de liberdade individual e sexual, a maneira de vestir-se e comportar-se, buscando o equilíbrio de direitos entre os gêneros.

Em 1960 a Liga Feminina do Estado da Guanabara foi fundada. Além de oferecer cursos de corte e costura, enfermagem e outros, promovia palestras e liderava algumas campanhas, por exemplo contra o alto custo de vida e chegou a organizar um abaixo assinado com mais de 100 mil assinaturas.

O Estatuto da mulher Casada – 1962

O Código Civil Brasileiro de 1916 retratava uma sociedade marcadamente conservadora e patriarcal. Assim, só podia consagrar a superioridade masculina. A força física do homem foi transformada em poder pessoal e foi-lhe entregue o comando exclusivo da família. Por isso, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade, tornando-se parcialmente capaz, como os índios, os pródigos e os menores. Para trabalhar precisava da autorização do marido.

A família se identificava pelo nome do homem, sendo a mulher obrigada a adotar os sobrenomes do marido. O casamento era indissolúvel. Só havia o desquite – significando não quites, em débito para com a sociedade – que rompia o acordo conjugal, mas não dissolvia o casamento.

Só o casamento constituía a família legítima. Os vínculos extraconjugais, além de não reconhecidos, eram punidos. Com o nome de concubinato, eram condenados à clandestinidade e à exclusão; não só social, mas também jurídica, não gerando qualquer direito. A posição da mulher era clara: era ela a mais prejudicada.

A condição matrimonial dos pais levava a uma cruel divisão entre os filhos. A prole concebida fora do casamento não tinha nenhum direito. Chamados de adulterinos ou incestuosos, todos eram rotulados como filhos ilegítimos, sem direito de buscar sua identidade. Não podiam ser reconhecidos enquanto o pai fosse casado. Só o desquite ou morte permitia a demanda investigatória de paternidade. Os filhos eram punidos pela postura do pai, que saia premiado, pois não assumia qualquer responsabilidade pelo fruto de sua aventura extraconjugal. Quem era punida era a mãe, que acabava tendo que sustentar sozinha o filho, pagando o preço pela “desonra” de ter um filho “bastardo” (DIAS, 2008).

O primeiro grande marco para romper a hegemonia masculina foi em 1962, quando da edição da Lei 6.121. O chamado Estatuto da Mulher Casada, devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal. A lei, de autoria da paulista Carlota Pereira de Queiroz, a primeira deputada federal do País e uma das principais pioneiras do movimento organizado de mulheres, trazia inovações como o direito ao pátrio poder também para a mulher. Foi dispensada a necessidade da autorização do marido para o trabalho e instituído o que se chamou de bens reservados, que se constituía do patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho. Esses bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família (DIAS, 2008).

Em 1963 realizou-se o Encontro Nacional da Mulher Trabalhadora, organizado pelo Pacto de Unidade Intersindical de São Paulo, com a participação de 415 delegadas para discutir a situação da mulher trabalhadora brasileira. Tinha entre seus temas a aplicação efetiva das leis sociais e trabalhistas em favor da mulher; mas as questões relativas à libertação da mulher, como autonomia, controle de fertilidade, aborto e sexualidade não eram sequer mencionadas.

O Golpe Civil-Militar e o Período da Ditadura

Em 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente. Na época, a legislação eleitoral permitia chapas independentes para a Presidência e seu vice. Por essa razão, João Goulart, do PTB, foi reeleito. Alguns meses depois foi enviado pelo presidente, em missão comercial, à China. Ainda nesse país, em 24 de agosto de 1961, teve notícia de que Jânio renunciara. Em conformidade com a Constituição Federal, João Goulart seria empossado como presidente. Como não era algo que militares e antigetulistas admitiriam, teve início o que ficou conhecido como a Campanha da Legalidade: uma mobilização civil-militar defendendo a posse de João Goulart, contestada por grupamentos de adversários civis e militares. Em 25 de agosto, Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, lançou um manifesto em apoio à posse de João Goulart.

No dia seguinte, o país amanhece com o poder tomado por três ministros militares: o general Odílio Denys, ministro da Guerra; o brigadeiro Gabriel Grün Moss, ministro da Aeronáutica; e o almirante Silvio Heck, ministro da Marinha. Esses ministros declararam o estado de sítio, sob o argumento de impedir manifestações públicas. Entravam em choque as concepções de legalidade. Na noite do dia 25, o marechal Lott divulga um manifesto à nação, em que tomava conhecimento da decisão do marechal Odílio Denys de não permitir que o atual presidente da República, João Goulart, entrasse no exercício de suas funções e, ainda, de detê-lo no momento em que pisasse no território nacional. Repudiou a solução anormal e arbitrária que se pretendia impor à Nação e conclamou a todos a tomarem posição e defenderem a Constituição e o regime democrático brasileiro. Ele contava que as Forças Armadas também se portassem dentro da legalidade.

Sequencialmente, Lott seria preso por ordem do ministro da Guerra e recolhido à Fortaleza da Lage, no Rio de Janeiro.

Os setores favoráveis aos ministros militares também se mobilizaram. No Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, governador da Guanabara, partidário do golpe desde o seu início, censurou os meios de comunicação e mandou ocupar rádios, a fim de que a Cadeia da Legalidade não tomasse o Rio de Janeiro. A polícia ocupou as oficinas do jornal Última Hora e apreenderam edições do Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Diário da Noite e Gazeta da Noite. Apenas um periódico seria poupado da censura: a Tribuna da Imprensa, de propriedade do governador.

Segundo os líderes do golpe, João Goulart era um agente da subversão no país, perigoso para a segurança nacional, abertamente identificado com o comunismo internacional. Em um regime presidencialista como o brasileiro, no qual o chefe do Executivo possuía um grande poder discricionário, sua posse seria fatalmente um veículo desagregador da ordem e da segurança nacional.

A Campanha da Legalidade foi vitoriosa. João Goulart assumiu a Presidência, mas as articulações para tirá-lo do poder se tornaram cada vez mais consistentes, inclusive do ponto de vista da ação dos civis.

A partir desse momento, os conspiradores golpistas aceleraram seu trabalho para derrubar João Goulart. Passaram a ter necessidade urgente de mobilizar as bases sociais que deveriam dar sustentação política e “legitimação” às suas ações golpistas contra a democracia vigente. Precisavam de demonstrações de massa e, para isso, lançaram mão das mulheres. Milhares delas foram utilizadas para saírem às ruas, em defesa das forças de direita, engrossando a Marcha com Deus pela Família e a Liberdade. Quinhentas mil “marchadeiras” em São Paulo, duzentas mil em Minas, e assim por diante. (TELES, 1993, p. 53)

As entidades que encabeçavam o movimento tinham começado a surgir em meados de 1962: União Cívica Feminina, Movimento da Arregimentação Feminina, conhecido pela sigla MAF, e a Campanha da Mulher pela Democracia (CAMDE) e outras mais. Suas lideranças estavam bem conscientes do que pretendiam: acabar com a “ameaça comunista” e contrapor-se a qualquer mudança de caráter popular. (TELES, 1993, p. 53)

Em 9 de abril de 1964, em manifesto à nação sob a forma de norma jurídica, mais tarde conhecido como Ato Institucional n° 1, é confirmada a vitória do movimento militar que derrubara o governo constitucional de João Goulart. Publicado no Diário Oficial de 9 de abril de 1964, o ato vinha assinado pelos comandantes chefes das três armas: o general do Exército Artur da Costa e Silva; o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello (Aeronáutica) e o vice-almirante Augusto Hamann Rademaker Grunewald (Marinha). De maneira bastante clara, ele expõe em seu conteúdo as razões e o objetivo de poder reivindicado pelo regime que formalmente ali se inaugurava:

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1964).

Assim, em 1964 um golpe contrário à política governista, considerada de esquerda, impôs um governo autoritário-militar que cassou os direitos políticos e civis de inúmeros cidadãos. Em resposta, houve o surgimento de um forte movimento de mulheres pela restauração da plena cidadania que, posteriormente, se consolidou num movimento feminista durante o período da ditadura militar, em um momento em que outros movimentos de libertação como movimento estudantil e de bairro denunciavam a existência de formas de opressão que não se limitavam somente ao econômico. Assim, aquelas mulheres que se movimentaram contra o comunismo e a subversão foram sendo relegadas a um plano secundário.

Outro traço que marca a trajetória particular do feminismo no Brasil, pelo menos quando comparado ao dos países europeus, diz respeito ao próprio caráter dos movimentos sociais no Brasil em sua relação com o Estado. Os movimentos sociais urbanos organizaram-se em bases locais, enraizando-se na experiência cotidiana dos moradores das periferias pobres, dirigindo suas demandas ao Estado como promotor de bem-estar social. Organizados em torno de reivindicações de infraestrutura urbana básica (água, luz, esgoto, asfalto e bens de consumo coletivos), esses movimentos tem como parâmetro o mundo da reprodução – a família e suas condições de vida – que caracteriza a forma tradicional de identificação social da mulher. Sendo o referencial de sua existência, foi o que as moveu politicamente. Os grupos feministas, tendo a origem social de suas militantes nas camadas médias e intelectualizadas, em sua perspectiva de transformar a sociedade como um todo, atuaram articulados a estas demandas femininas, tornando-as próprias do movimento geral das mulheres brasileiras. (SARTI,1998)

O feminismo foi se expandindo dentro deste quadro geral de mobilizações diferenciadas. Conviveu com a diversidade, sem negar sua particularidade. Inicialmente, ser feminista tinha uma conotação pejorativa. Vivia-se sob fogo cruzado. Para a direita era um movimento imoral, portanto perigoso. Para a esquerda, reformismo burguês e para muitos homens e mulheres, independentemente de sua ideologia, feminismo tinha uma conotação anti-feminina. A imagem feminismo versus feminino repercutiu inclusive internamente ao movimento, dividindo seus grupos como denominações excludentes. (SARTI, 1998)

O AI-2 pode ser visto como a passagem do governo que se considerava transitório para um regime autoritário mais estruturado. Em grande parte, representa o fim da lua de mel entre os militares no poder e os políticos conservadores que apoiaram o golpe, mas queriam manter seus interesses partidários e eleitorais intactos, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. Basicamente, reforçava os poderes do presidente da República, em matérias constitucionais, legislativas, orçamentárias. O ato ainda reforçava a abrangência e a competência da Justiça Militar na punição dos crimes considerados lesivos à segurança nacional. O presidente da República ainda poderia decretar Estado de Sítio por 180 dias, fechar o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, intervir em estados, cassar deputados e suspender os direitos dos cidadãos por dez anos. Na prática, tratava-se de uma reforma constitucional imposta pelo Executivo federal. Se o golpe foi o batismo de fogo da ditadura, o AI-2 é a sua certidão de nascimento definitiva. (NAPOLITANO, 2014)

O AI-3, em fevereiro de 1966, completa a obra: estabelecem-se eleições indiretas para governadores e nomeação para prefeitos das capitais. Em março surgiram a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), os partidos de situação e oposição (consentida). (NAPOLITANO, 2014)

Editado por Castelo Branco em 7 de dezembro de 1966, o Ato Institucional Número Quatro (ou AI-4) convocou ao Congresso Nacional o estabelecimento de uma nova carta constitucional – a Constituição de 1967 – que revogaria de forma definitiva a Constituição de 1946.

Em 1968, na cidade do Rio de Janeiro, 100 mil pessoas se reuniram em protesto contra a ditadura militar e a morte do estudante Edson Luís, morto por uma bala disparada pela polícia militar na tentativa de debelar um protesto movido por estudantes e ativistas políticos nas imediações do antigo restaurante Calabouço próximo ao Centro do Rio.

Em dezembro, um discurso do deputado Márcio Moreira Alves, chamou os quartéis militares de “covis de torturadores”, pediu à população que boicotasse os desfiles de 7 de setembro e, às moças, que não dançassem com os cadetes nos bailes dos clubes militares.

O Congresso Nacional se recusou a aceitar a exigência das forças armadas: quebrar a imunidade parlamentar do deputado e instalar um processo criminal contra ele. A reação do regime foi violenta: em 13 de dezembro de 1968, o então Ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, edita o Ato Institucional n° 5, considerado o mais autoritário ato institucional baixado durante o Regime Militar. O ato também previa a duração de 180 dias, porém permaneceu em vigor por quase 10 anos.

O AI-5, em apenas 12 artigos, concedia ao Presidente da República, dentre outros, os poderes de cassar mandatos, intervir em estados e municípios, suspender direitos políticos de qualquer pessoa e, o mais importante, decretar recesso do Congresso e assumir suas funções legislativas no ínterim. O AI-5 também suspendeu o Habeas Corpus para crimes políticos. Por consequência, jornais oposicionistas ao regime militar foram censurados, livros e obras “subversivas” foram retiradas de circulação e vários artistas e intelectuais quiseram se exilar no estrangeiro.

De acordo com TELES:

A Editora Vozes publicou em 1988 um livro em que procurou fazer um levantamento das pessoas atingidas pela repressão política. Baseou-se apenas em dados de processos movidos contra presos políticos. Concluiu-se que, de 7.367 pessoas denunciadas, 88% eram homens e 12% mulheres.

A maior parte dessas pessoas foi processada por participar de atividades clandestinas em organizações partidárias. Logo depois do golpe, todos os partidos tiveram seus registros cassados pelos militares, sendo substituídos por duas agremiações partidárias institucionalizadas pelo próprio regime militar: ARENA e MDB.

Sem suas lideranças, a grande maioria do povo tinha ficado perplexa. Mas algumas organizações de esquerda rapidamente se reestruturaram para fazer um trabalho de resistência e luta contra a autoridade militar, que manipulava e controlava todos os setores da vida nacional. Todo cidadão era considerado, antes de tudo, um suspeito, um subversivo em potencial. (TELES, 1993 P. 59)

 

LUTA, TORTURAS E RESISTÊNCIA

 

Ao longo da história do Brasil, a luta de resistência das mulheres é recorrente. Durante a ditadura implantada com o golpe de 1964, as mulheres também foram protagonistas, como militantes e organizadoras da sociedade civil para o retorno do país à democracia.

O golpe militar institucionalizou a detenção, a prisão e o sequestro; o banimento, a tortura, o assassinato e o desaparecimento, deixando um legado de dor: mortos e desaparecidos políticos, uma legião incontável de militantes – homens e mulheres presos e torturados e histórias de vida devastadas.

Os militantes que ficaram no Brasil durante a vigência da ditadura civil-militar tornaram-se, quase todos, clandestinos políticos, única possibilidade de prosseguir a luta de resistência. Abandonaram a casa paterna, seus nomes de família, seu emprego e profissão, seus documentos de identidade, e fizeram-se anônimos, sem sobrenome, sem explicar para os filhos, crianças ainda, o que realmente faziam. Eram homens reservados e mulheres discretas. As relações entre os familiares e os amigos ficaram entrecortadas, esparsas, feitas de silêncios. Muitos souberam, tempos depois, do falecimento de seus próprios pais; outros receberam, meses depois, notícias sombrias de amigos e conhecidos. Esse anonimato desconcertante, e um jeito evasivo de ser, foi passando para os filhos, e certamente ficou inscrito como uma sensação indizível e, por isso, tornada inesquecível. A clandestinidade escolhida como forma de sobrevivência dentro do país foi, no princípio, uma defesa para o militante, mas, como um bumerangue, tornou-se um ponto vulnerável: a repressão aproveitou o anonimato dos militantes capturados, com seus nomes frios e identidades fabricadas, para negar, às famílias e aos advogados, o verdadeiro nome do preso. Dessa forma, eliminou-os, enterrou-os, fê-los desaparecer com nomes frios, como indigentes, nenhum nome, os NN. (MELINO & OJEDA, 2010. P. 29)

 

Mulheres Torturadas

 

O principal objetivo do torturador era despir o corpo e tentar alcançar a alma do torturado, desconstruir sua inteireza, sua integridade e sua privacidade. O corpo da mulher, sempre objeto de atenção, tornou-se presa do desejo maligno do torturador e ficou entregue em suas mãos. Autorizado por seus superiores e mandantes, o servidor torturador incorporou ingredientes próprios e piores ao ato que, por delegação, lhe foi solicitado e previamente permitido.

A tentativa de destituir a mulher de seu lugar feminino, de mulher, de mãe, não encontrou nos porões da ditadura qualquer trégua. O lugar de cuidadora e de mãe foi vulnerado com a ameaça permanente aos filhos também presos ou sob o risco de serem encontrados onde estivessem escondidos. O aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros. A devastação da tortura não tem parâmetros materiais.

Muitas mulheres foram assassinadas. Algumas foram cingidas com uma cinta de aço que, paulatinamente apertada, levou-as à morte; outras foram assassinadas a sangue frio; muitas foram estupradas, mutiladas e atingidas pelas armas. Algumas enlouqueceram pela dor e pela brutalidade e não sobreviveram aos choques elétricos. Todas, em sua provável maioria, foram despidas à força em algum momento. São brasileiras que fazem parte da galeria de mulheres combatentes e destemidas, muitas delas ainda insepultas por estarem desaparecidas. (MELINO & OJEDA, 2010. P. 31)

Durante a ditadura militar, os órgãos de repressão utilizaram-se de inúmeros métodos de tortura contra seus opositores. Dentre os mais conhecidos, estavam o pau de arara, a cadeira do dragão, a coroa de cristo, o telefone, a palmatória, o choque elétrico e a sala frigorífica (geladeira). O pau de arara, já utilizado durante a escravidão no Brasil, consistia em uma barra de ferro presa a dois cavaletes; o preso era amarrado nu, tendo a barra de ferro atravessada entre seus punhos e joelhos. Tal método era geralmente utilizado com outros “complementos”, como choques elétricos, palmatória, pancadas, queimaduras e afogamento. O telefone consistia em golpear simultaneamente os dois ouvidos do preso, com as mãos em forma de concha. A cadeira do dragão era geralmente uma cadeira revestida de zinco, onde os presos sentavam nus, com os pés e as mãos amarrados; fios elétricos eram ligados ao seu corpo, transmitindo descargas na língua, ouvidos, olhos, pulsos, seios e órgãos genitais. A coroa de cristo era um torniquete de aço que ia sendo gradativamente apertado, esmagando o crânio do prisioneiro na região frontal e temporal.

Ao mesmo tempo em que esses fatos ocorriam, outras mulheres da sociedade civil e de organizações sociais se organizavam em movimentos de protesto e de indignação. Nas ruas e nas praças; dentro das universidades e das escolas; em igrejas, nos sindicatos, nas fábricas, na cidade e no campo. Algumas se levantaram em ações determinantes para que outros setores da sociedade se reunissem em movimento de crítica e de campanha pelo fim da ditadura.

Entre esses movimentos, a luta pela anistia se impôs como uma decisão política que se pronunciava pública e organizadamente contra os civis e militares no poder. Inicialmente organizada por mulheres com o Movimento Feminino pela Anistia e, depois, pelos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), a campanha foi fruto da indignação de vários setores da sociedade brasileira e do desejo de um basta ao regime. Os comitês exigiam libertação imediata de todos os presos políticos; volta de todos os exilados, banidos e cassados; reintegração política, social e profissional dos funcionários públicos ou privados demitidos por motivos políticos; fim radical e absoluto da tortura; revogação da Lei de Segurança Nacional, desmantelamento do aparato repressivo; esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos por motivação política e o julgamento dos responsáveis.

Organizados em 1978 no Rio de Janeiro e, a seguir, em São Paulo, os CBAs foram resultado de vários esforços dos anos anteriores, em defesa dos perseguidos políticos pelo regime militar. Já desde 1973, procuravam chamar a atenção da opinião pública para o avanço da ditadura. Em 1975, por iniciativa das mulheres e de Terezinha Zerbini, um abaixo-assinado com 16 mil assinaturas propunha a anistia. Inicialmente pensada como perdão e esquecimento nos anos de 1976 e 1977, novos acontecimentos contribuíram para a organização de uma proposta política mais ampla de repúdio à ditadura. Muitas mulheres se uniram à campanha como mães, irmãs, esposas e amigas de atingidos e também como militantes até então clandestinas.

O I Congresso pela Anistia, realizado em novembro de 1978, em São Paulo, foi um marco na consolidação dos comitês de anistia, que chegaram a ser sessenta em todo o Brasil. O evento foi antecedido de reuniões no Instituto Sedes Sapientiae, com a autorização de Madre Cristina Sodré Dória, destacada apoiadora do movimento de resistência à ditadura. A abertura solene foi feita no teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o Tuca, durante a reitoria da professora Nadir Gouvêa Kfouri, que, um ano antes, em setembro de 1977, defendera com altivez o campus da universidade durante sua invasão pela Polícia Militar, sob o comando do coronel Erasmo Dias. O encerramento das atividades ocorreu no teatro de Ruth Escobar – ela integrava a comissão executiva do Comitê Brasileiro pela Anistia de São Paulo.

Em 1980, o CBA/SP organizou uma manifestação comovente, só de mulheres, nas ruas de São Paulo, durante a visita ao Brasil do ditador argentino Jorge Rafael Videla. Elas se reuniram na escadaria do Teatro Municipal e seguiram pelo Viaduto do Chá até o Largo São Francisco. Ruth Escobar, como diretora de cena, propôs que todas se vestissem de preto e caminhassem em silêncio. Na cabeça, lenços brancos com os nomes dos desaparecidos e, nas mãos, matracas tocando vigorosamente. Nos vários cartazes portados, estavam os nomes dos militantes desaparecidos na Argentina e no Brasil.

Hoje, estão reintegradas à cena social, política e cultural do país mulheres que foram atingidas mais duramente pela ditadura civil-militar. Muitas que protagonizaram movimentos sociais de libertação e/ou estiveram clandestinas e exiladas continuam, em diferentes patamares, sustentando novos projetos para o país. (MELINO & OJEDA, 2010. P. 33)

 

ANOS 70 – MARCO DO FEMINISMO NO BRASIL E NO MUNDO

 

Os movimentos feministas dos anos 70 e 80 somaram a luta pela democracia à luta pela desigualdade de gênero. No entanto eram desqualificados pelos meios de comunicação em geral, que as acusavam de alienadas, com preocupações burguesas, de copiarem um modismo de americanas ou europeias. Para ridicularizar as militantes, “desmascarar” suas lutas, acusá-las de não atentar para as verdadeiras necessidades das trabalhadoras, estes meios negavam que houvesse violência contra a mulher, afirmavam que estupros eram provocados pela própria vítima e que era legítimo matar uma mulher em nome da “honra”. Negavam que as mulheres de favela tivessem qualquer interesse em discutir a própria sexualidade, o planejamento familiar ou o aborto. Estas críticas, perturbadoras numa sociedade profundamente patriarcal e machista, ignoravam a experiência das “estrangeiras”, na verdade brasileiras exiladas políticas, em contato constante com as brasileiras donas de casa, acadêmicas e sindicalistas, estudante de diferentes classes sociais, artistas e trabalhadoras, que lutavam, no país, contra a ditadura militar. Ser feminista tornou-se sinônimo de exibicionismo, alienação, inconsequentes “queimadoras de sutiãs”, marca desfiguradora que se introjetou de tal maneira que, mesmo hoje, muitas mulheres com valores e comportamentos plenamente feministas não aceitam serem adjetivadas como tal. Contudo, o que ocorreu foi que ao discutir a relação homem-mulher, ao negar a hierarquia de gênero, a subordinação e a sexualidade, levavam necessariamente a discutir direitos civis, liberdade e democracia, o que atingia diretamente o poder autoritário. Falar sobre os direitos da mulher era enfrentar a ditadura militar. A questão “mulher” tornou-se um assunto de segurança nacional, portanto, muito perigoso para as militantes. E isso, antes de atemorizar, veio fortalecer o movimento (BLAY, 1999: 135-137).

O feminismo brasileiro surgiu nas camadas médias, inicialmente chamado de movimento de mulheres, pela sua pluralidade. Expandiu-se através de uma articulação com as camadas populares e suas organizações de bairro, constituindo-se num movimento de várias classes sociais.

Nessa conjuntura, o movimento feminista buscou repensar a condição das mulheres dentro da sociedade patriarcal, revelando-se assim nos âmbitos público e privado; recriando relações pessoais sob um prisma em que o feminino não seria o menos, o desvalorizado. Denunciava a mística de um eterno feminino, ou seja, uma credibilidade na inferioridade da mulher, como sendo algo natural, calcada em fatores biológicos. Questionava assim, a ideia de que homens e mulheres estariam predeterminados, por sua própria natureza, a cumprirem papéis opostos na sociedade.

Ao saldo da experiência de resistência das mulheres à ditadura aliaram-se as mudanças por que vinha passando o país sob regime autoritário, ainda que já no processo chamado de “distensão lenta e gradual” dos últimos governos militares. A expansão do mercado de trabalho e do sistema educacional que estava em curso num país que se modernizava, gerou, ainda que de forma excludente, novas oportunidades para as mulheres. Este processo de modernização, acompanhado da efervescência cultural de 1968, de novos comportamentos afetivos e sexuais relacionados ao acesso à métodos anticoncepcionais e ao recurso às terapias psicológicas e à psicanálise, impactou o mundo privado. Novas experiências cotidianas entraram em conflito com o padrão tradicional de valores nas relações familiares, sobretudo por seu caráter autoritário e patriarcal. Nessas circunstâncias, o Ano Internacional da Mulher, 1975, oficialmente declarado pela ONU, propicia o cenário para início do movimento feminista no Brasil, ainda fortemente marcado pela luta política contra o regime militar. O reconhecimento oficial pela ONU da questão da mulher como problema social favoreceu a criação de uma fachada para um movimento social que ainda atuava nos bastidores da clandestinidade, abrindo espaço para a formação de grupos políticos de mulheres que passaram a existir abertamente, como o Brasil Mulher, Nós Mulheres, o Movimento Feminino pela Anistia, citando apenas os de São Paulo (SARTI, 1998).

Os movimentos de mulheres no Brasil tinham uma delicada relação com a Igreja Católica. As organizações femininas de bairro ganharam força como parte do trabalho pastoral inspirado na Teologia da Libertação. Isto colocou os grupos feministas politizados em permanente enfrentamento com a Igreja na busca de hegemonia dentro dos grupos populares. O tom predominante, entretanto, foi o de uma política de alianças entre o feminismo, que buscava explicitar as questões de gênero, os grupos de esquerda e a Igreja Católica, todos navegando contra a corrente do regime autoritário. Desavenças eram evitadas, pelo menos publicamente. O aborto, a sexualidade, o planejamento familiar e outras questões permaneceram no âmbito das discussões privadas, feitas em pequenos “grupos de reflexão”, sem ressonância pública. A atuação da Igreja, no que se refere à perspectiva feminista, sempre teve limites claros, prevalecendo a rigidez de princípios morais, ainda que a atuação cotidiana nas comunidades de base pudesse comportar alguma flexibilidade.

O ano de 1975 é considerado o momento inaugural do feminismo no Brasil. Até então, o movimento era restrito a grupos muito específicos e fechados, configurando-se quase como uma atividade privada, dentro da casa das pessoas. Os últimos anos da década de 1960 e os primeiros da década de 1970 foram dominados pela linha mais dura do Exército: o General Médici governava usando grandes proporções de repressão; não havia espaço para qualquer manifestação pública e os níveis de violência repressiva chegaram a níveis não imaginados nem pelos próprios componentes do regime.

Em 1975, o General Geisel já havia assumido o governo e prometia uma distensão política gradual e controlada. Mas o que marcou realmente o ano na história do feminismo foi a decisão da ONU (Organização das Nações Unidas) de defini-lo como o Ano Internacional da Mulher e o primeiro da década da mulher, realizando ainda uma conferência sobre o assunto no México. A questão da mulher ganhava a partir daí um novo status, tanto diante de governos autoritários e sociedades conservadoras, como em relação a projetos ditos progressistas que costumeiramente viam com grande desconfiança a causa feminista. No Brasil, muitos eventos de natureza e abrangência diferenciadas marcaram a entrada definitiva das mulheres e de suas questões na esfera pública. O primeiro deles, e o mais abrangente, foi um evento com o propósito de comemorar o Ano Internacional da Mulher, patrocinado pelo Centro de Informação da ONU, realizado no Rio de Janeiro com o título de “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”. Neste evento foi criado o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (PINTO, 2003, p. 56).

A formalização de um centro que se preocupasse com a questão da mulher foi particularmente interessante, pois mostrou uma virada radical na trajetória do movimento, que se tornava público e buscava a institucionalização.

Também nesse ano as mulheres prepararam um abaixo-assinado, acompanhado do “Manifesto da Mulher Brasileira”, em favor da anistia ampla, geral e irrestrita. O embrião dessa luta formou-se em 1968, com uma comissão das mães dos estudantes presos em Ibiúna, pela libertação dos seus filhos. Mais tarde juntaram-se ao movimento familiares de presos políticos (mães, esposas, irmãs e companheiras). Percorrendo todo o Brasil, esse manifesto foi aderido por estudantes, advogados e outros profissionais liberais, mães de família e trabalhadoras. Nascia assim, o Movimento Feminino pela Anistia.

A iniciativa teve repercussão mundial, e no México, durante a Conferência do Ano Internacional da Mulher, foi aprovada a moção em favor da anistia, encaminhada pela brasileira Terezinha Zerbini, uma das principais lideranças desse movimento. Mais tarde, todos esses movimentos fizeram parte do Comitê Brasileiro pela Anistia, do qual participaram homens e mulheres e foi decisivo para a aprovação da Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979.

De acordo com TELES:

No Congresso Nacional pela Anistia, realizado em janeiro de 1979, uma comissão de mulheres sugeriu a unificação da campanha pela anistia com os movimentos que tratavam das reivindicações específicas da mulher. Para uma atuação imediata, a comissão definiu os seguintes pontos: levantamento de todas as mulheres brasileiras atingidas pela repressão, lutando pelas liberdades democráticas; uma campanha de verdadeira comemoração do Ano Internacional da Criança (1979), com a denúncia de todas as violências e arbitrariedades cometidas contra menores; denúncia dos problemas das crianças impossibilitadas de possuir registro de nacionalidade e as crianças atingidas, juntamente com seus pais, pelos órgãos de repressão; uma campanha de assistência às presas políticas.

Considerando ainda que a brutalidade policial contra a população brasileira tem como objetivo a intimidação do povo, a comissão de mulheres também propôs que os atos de repressão em geral fossem denunciados por: levantamento de casos de violência em locais de trabalho; divulgação de casos de violência sexual; levantamento de casos de mulheres que sofreram violência policial e levantamento de menores presos, torturados e mortos pela repressão (TELES, 1993, P. 83)

Em 1977 e 1978, respectivamente, aconteceram o I e II Encontro da Mulher que Trabalha. O primeiro realizado no Sindicato dos Aeroviários e o segundo no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro.

Em 1978 também aconteceu o I Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo e Diadema, em São Paulo.

Como vimos, no Brasil, a implantação do movimento feminista se deu por conta de uma situação particular e contraditória: de um lado, o regime militar repressivo não via com bons olhos nenhum tipo de organização da sociedade civil, ainda mais se tratando de mulheres que, inspiradas pelas norte-americanas, ameaçavam a “família tradicional brasileira”. Paradoxalmente, essas mulheres também não encontravam apoio entre os grupos que lutavam contra a ditadura e tinham um discurso libertário. Mas, ao fim da década, o movimento feminista existia no Brasil de fato. Frágil, perseguido e fragmentado; mas presente o suficiente para incomodar todos os poderes estabelecidos, tanto do regime militar, quanto dos homens companheiros de esquerda. Ainda assim, o feminismo brasileiro estava pronto para a próxima década.

 

OS ANOS 80 E A REDEMOCRATIZAÇÃO

 

Após os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, e do operário Manuel Fiel Filho, três meses depois, um forte repúdio da opinião pública às falsas versões oficiais de “suicídio” fez com que o presidente decidisse agir contra os porões do regime. Abriu-se, então, um confronto entre Geisel e militares mais à direita, que só terminaria com a queda de Sylvio Frota do comando do Exército, em outubro de 1977.

No ano seguinte, um novo crescimento do MDB nas eleições gerais resultou em maior enfraquecimento do regime, o que se converteu, entre outras coisas, na aprovação em 1979 da Lei de Anistia. Mesmo incorporando o conceito de “crimes conexos” como tentativa de proteger os agentes do Estado envolvidos em torturas e assassinatos, ela possibilitou o retorno de lideranças políticas que estavam exiladas e a libertação imediata de uma parte dos presos políticos.

Desde 1978, no entanto, vinham se repetindo atentados a bomba e invasões ou depredações de entidades e jornais de caráter oposicionista, cuja autoria foi interpretada como só podendo ser de algum tipo de braço clandestino da repressão, descontente com o processo de abertura. Em 30 de abril de 1981, o famoso atentado frustrado no Rio Centro parece ter confirmado tal tese.

Nas eleições de 1982, que marcaram a estreia das novas siglas partidárias (PMDB, PDS, PTB, PDT e PT), os partidos de oposição conquistaram o governo em vários estados, destacando-se, dentre eles, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Entre novembro de 1983 e abril de 1984, uma grande pressão popular exigiu eleições diretas para presidente, mobilizando milhões de pessoas em passeatas e comícios. Essa campanha, conhecida como “Diretas Já”, não foi vitoriosa, mas apressou o fim do regime militar.

Em janeiro de 1985, o governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, foi eleito presidente no Colégio Eleitoral, mas uma grave enfermidade impediu sua posse e causou seu falecimento, em 21 de abril. Foi empossado então o vice-presidente, José Sarney, senador do Maranhão que havia pertencido à Aliança Renovadora Nacional (Arena), o partido da ditadura. Mas esta já havia chegado ao fim e preparava-se a convocação de uma Assembleia Constituinte, eleita em 1986, que, ao promulgar a Constituição Cidadã em 5 de outubro de 1988, consolidou o retorno do Brasil à democracia.

A década de 1980 foi o momento de maior engajamento das mulheres na militância pela garantia de seus direitos, em função da redemocratização do regime político no país. Inúmeros grupos e coletivos juntaram-se à causa das mulheres e trouxeram novas pautas como violência, igualdade no casamento, direito a terra e orientação sexual.

Tancredo Neves havia se comprometido a criar um órgão estatal para cuidar dos direitos da mulher. José Sarney manteve a promessa e, em 1985, criou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) junto ao Ministério da Justiça. O órgão contava com orçamento próprio, tendo sua presidente status de Ministra. Era composto por 17 conselheiras, nomeadas pelo Ministro da Justiça, por um Conselho Técnico e por uma Secretaria Executiva. Teve uma vida curta como órgão de articulação das demandas do movimento feminista e das mulheres em geral. Sua atuação real se deu entre 1985 e 1989 e perdeu seu orçamento com o governo Collor. Depois disso, o CNDM não conseguiu mais recuperar o espaço que havia conquistado na década de 80.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, houve uma mobilização expressiva da sociedade civil, por meio de suas entidades, para enviar emendas populares. Segundo o regimento da Constituinte, essas deveriam conter no mínimo 30 mil assinaturas. Foram enviadas 122 emendas, com o total de 12.265.854 assinaturas. Quatro dessas emendas trataram dos direitos das mulheres; três delas foram promovidas por associações de mulheres e grupos feministas, somando 243.068 assinaturas. Entre essas emendas, a que continha o maior número de assinaturas era promovida por três entidades: a Federação das Associações de Bairro de Salvador, a Associação de Moradores de Plataforma e a Associação de Mulheres de Cosme de Farias. A proposta era a aposentadoria das mulheres donas de casa, justificando o trabalho doméstico como contribuição à renda familiar e a aposentadoria como reparação pelas atividades profissionais não exercidas pelas mulheres, em razão desse tipo de ocupação (emenda 19).

A “Carta das Mulheres”, promovida pela CNDM mas de autoria de um conjunto muito amplo de mulheres chamadas a Brasília, foi o documento mais completo e abrangente produzido na época, e possivelmente um dos mais importantes elaborados pelo feminismo brasileiro contemporâneo. Está dividida em duas partes: a primeira propõe uma agenda que ultrapassa em muito os limites dos interesses corporativos das mulheres. Isso era especialmente importante por se tratar de uma intervenção a partir de um grupo que representava interesses de um movimento social tão específico. O documento defendia a justiça social, a criação do Sistema Único de Saúde, o ensino público e gratuito em todos os níveis, autonomia sindical, reforma tributária, reforma agrária, negociação da dívida externa, entre outras propostas. Na segunda parte, o documento detalhava as demandas em relação aos direitos da mulher no que se referia a trabalho, saúde, direitos de propriedade, sociedade conjugal, entre outros. Em dois pontos, a carta apresentou originalidade em relação aos demais documentos do período. O primeiro refere-se à questão da violência contra a mulher, expresso numa detalhada proposta de defesa da integridade física e psíquica das mulheres, redefinindo o conceito de estupro e sua classificação penal, apenando o explorador sexual e solicitando a criação de delegacias especializadas no atendimento à mulher em todos os municípios do território nacional. O segundo diz respeito ao polêmico tema do aborto: a carta não propõe explicitamente a legalização da prática, mas postula um preceito constitucional que abriria caminho para uma posterior discussão do tema. Nela se lê: “Será garantido à mulher o direito de conhecer e decidir sobre o seu próprio corpo”. (PINTO, 2003, p. 75)

 

CONCLUSÕES FINAIS

 

Ao rever a trajetória do movimento feminista no Brasil percebemos que muitas de suas conquistas ainda são frágeis e não consolidadas. Mesmo com o fim do regime militar e a redemocratização, o patriarcado e o machismo ainda se mostram muito presentes, sobretudo nas questões de trabalho e direitos reprodutivos.

Não se pode negar os avanços conquistados, pois essas mulheres, nessas três décadas abordadas nesse trabalho, dispuseram suas próprias vidas em favor da liberdade e igualdade de direitos.

Especialmente às torturadas e mortas pela ditadura, que suportaram as mais terríveis dores e humilhações, muitas vezes não sobrevivendo, devemos continuar seu legado e não permitir que outro período como esse se repita.

Trinta anos depois da promulgação da Constituição Cidadã, ainda existem muitas pautas e reivindicações a serem estudadas e atendidas; a violência cresce a cada dia, mas também cresce o número de mulheres em papéis de representatividade, sobretudo política. Os movimentos feministas se multiplicaram, se fortaleceram e têm uma importante função na questão da educação, emancipação e empoderamento das mulheres, principalmente nas classes mais baixas.

Cabe, enfim, considerar que o Movimento Feminista frente à luta pelos direitos das mulheres possibilitou grandes conquistas como direito ao voto, ao estudo, inserção no mercado de trabalho, divórcio e outras, consolidando uma maior participação feminina na sociedade. Grandes são os desafios das mulheres na luta pela conquista de direitos e reconhecimento e o movimento feminista precisa continuar atuante para a garantia e ampliação de novos direitos. Faz-se necessário também que o Estado invista cada vez mais em Políticas Públicas para as mulheres e que estas sejam as protagonistas dessas conquistas.

“É, portanto, em favor de todas as mulheres brasileiras que escrevemos, é a sua geral prosperidade o alvo de nossos anelos, quando os elementos dessa prosperidade se acham ainda tão confusamente marulhados no labirinto de inveterados costumes e arriscadas inovações”.

Nísia Floresta

 

FONTE: NÃO ME KAHLO